Percebo que
alguns filmes que nem estão cotados como top
podem me tocar de forma marcante. Fiquei pensando se poderia descrever o que
então caracterizaria esse meu gosto. São filmes despretensiosos a princípio, mas
que, vão gradativamente me surpreendendo. Possuem quase sempre uma temática
relacionada às minhas pesquisas sobre o impacto da tecnologia na vida das
pessoas. Dois exemplos que merecem menção: Julie e Julia e, mais recentemente, A Vida Secreta de Walter Mitty.
Julie e Julia
retrata a vida
de Julia Child, autora de livros de culinária e uma das pioneiras a explorar o
tema da gastronomia e das receitas culinárias na televisão norte-americana e de
Julie Powell uma tele-atendente do ramo de seguros que decide escrever um blog
sobre o principal livro de Julia. A vida das duas protagonistas é descrita de
forma intercalada.
O filme me encantou porque retrata de forma leve e descompromissada as
diferenças do mundo da comunicação do final do século XX para o mundo deste
início de século. O filme apresenta conceitos chave da economia digital de
nossos dias. Em especial, ele exemplifica ainda o que significa cognitive
surplus e remix.
Cognitive Surplus foi lançado
por Clay Shirky em sua palestra na Conferência Web 2.0 em San Francisco. Ele acredita
que as pessoas vão cada vez mais usar o tempo que têm disponível para realizar
atividades que lhe interessam “cognitivamente”, i.e. que lhes acrescentem
conhecimento, cultura ou meramente prazer. Julie, no filme, faz exatamente
isso. Precisa se realizar, o que o trabalho rotineiro decididamente não lhe
permite, e para isto resolve escrever um blog.
O segundo conceito, o de Remix, foi lançado
por Lawrence Lessig em seu livro de mesmo nome . Lessig
é um advogado que em seu livro desconstrói o conceito de direitos autorais (copyright) tal como ele é hoje. Ele
advoga por uma reformulação das idéias de base do conceito e um de seus
argumentos repousa na, cada vez mais frequente,
capacidade das pessoas de renovar (remixar?)
produtos com diferentes abordagens, apelos e normalmente em uma mídia
digital.
No filme, Julie, em seu blog, faz exatamente
isso. Ela explora o livro de Julia e tenta reproduzir as receitas lá descritas.
É uma espécie de revisitação das receitas e dos desafios de reproduzi-las. Não
quero descrever todo o filme, mas basta salientar que as diferenças do sistema
de marketing e publicidade dos
trabalhos das duas também está presente no filme. Mesmo para os que não estão
muito afeitos à tecnologia, recomendo o filme mesmo que somente pela versátil
atuação de Meryl Streep ao interpretar Julia.
Já A
Vida Secreta de Walter Mitty me conquistou mais ainda. Trata-se de um remake
do Homem de oito vidas produzido em 1947 com Danny Kaye e Virginia Mayo. A nova versão produzida pelo
filho do produtor da versão original Samuel Goldwin Jr. tem Ben Stiler como
diretor e ele mesmo atua como Walter Mitty. Walter é um sujeito sonhador e responsável pelo departamento de arquivo e
revelação da tradicional revista Life.
A revista deixará de ter uma versão
impressa para ter apenas conteúdo online e aí começa uma história com enredo
divertido e com dois aspectos que me chamaram fortemente a atenção.
Novamente vem à
tona os impactos provocados pela Era Digital. Walter está em vias de ser
despedido, muito embora tenha trabalhado com afinco para a Empresa durante
longos anos, simplesmente porque sua função, a de revelar fotografias, deixará
de existir. Aliás, quem no futuro conhecerá alguém que revelava fotografias?
Outro fato
revelador (com o perdão do trocadilho) dessa nossa Era é a relação de Walter
com um atendente da e-harmony, um
site destinado a encontrar namorados(as). Walter, por ser alguém de vida
simples e pacata, tem um perfil muito pouco atrativo. Nesses nossos dias de
superexposição midiática, redes sociais e etc. estamos a todo momento buscando
nosso momento de celebridade. Um artigo no Facebook contando nossas aventuras e
que recebe vários curtir é uma massagem forte no ego, não? Walter, no entanto,
tem pouca possibilidade de contar algo a ser curtido, a ser invejado, a ser
compartilhado. Ele tem tão pouco a contar, é, por isso, pouco atraente (so boring)
Mas por que não
contar seus sonhos? Eles lhe parecem tão reais! Aliás, mesmo para o espectador
é difícil distinguir o que é sonho e o que é realidade na vida de Walter. Aqui
para nós, mentir em perfis virtual não é nada muito extraordinários, não?
Pesquisas sobre a veracidade do que se diz em sites de encontros e namoros
mostram que as pessoas tendem a ser bem benevolentes consigo mesmas. As pessoas
são sempre “um pouquinho” mais bonitas, inteligentes, despojadas, enfim, são aquilo
que querem ser. Walter conseguiu isso?
Sem querer contar
mais sobre o filme, não posso, no entanto, deixar de mencionar os efeitos
visuais, os cenários e a fotografia que formam outros grandes méritos do filme.
Para finalizar, não poderia deixar de escrever sobre a ótima
trilha sonora, em especial, a mixagem feita em Space Oddity do grande David Bowie (já havia postado outra ótima
dele aqui) com
a própria atriz Kristen Wiig. Escutem-na abaixo e tenham também uma breve ideia
da belíssima fotografia.